Friday, April 29, 2011

As Lágrimas e os Homens



Vede que misteriosamente puseram as lágrimas nos olhos a Natureza, a Justiça, a Razão, a Graça. A Natureza para remédio; a Justiça para castigo; a Razão para arrependimento; a Graça para triunfo. Como pelos olhos se contrai a mácula do pecado, pôs a Natureza nos olhos as lágrimas, para que com aquela água se lavassem as manchas: como pelos olhos se admite a culpa, pôs a Justiça nos olhos as lágrimas para que estivesse o suplício no mesmo lugar do delito: como pelos olhos se concebe a ofensa, pôs a Razão nos olhos as lágrimas, para que onde se fundiu a ingratidão, a desfizesse o arrependimento: e como pelos olhos entram os inimigos à alma, pôs a Graça nos olhos as lágrimas, para que pelas mesmas brechas onde entraram vencedores, os fizesse sair correndo. Entrou Jonas pela boca da baleia pecador; saía Jonas pela boca da baleia arrependido. Razão é logo e Justiça, e não só Graça, senão Natureza, que pois os olhos são a fonte universal de todos os pecados, sejam os rios de suas lágrimas a satisfação também universal de todos; e que paguem os olhos por todos chorando, já que pecaram em todos vendo: Quo fonte manavit nefas, Fluent perennes lacrimae.

Padre António Vieira, in "Sermões"

Saturday, April 23, 2011

A Amizade é Indispensável ao Nosso Ser



A amizade é a unica coisa cuja utilidade é unanimemente reconhecida. A própria virtude tem muitos detratores, que a acusam de ostentação e charlatanismo. Muitos desprezam as riquezas e, contentes de pouco, agradam-se da mediocridade. As honras, à procura da qual se matam tanto as pessoas, quantos outros as desdenham até olhá-las como o que há de mais fútil e de mais frívolo? E, assim, quanto ao mais! O que a uns parece admirável, ao juízo doutros nada é. Mas quanto à amizade, toda a gente está de acordo: os que se ocupam dos negócios públicos, os que se apaixonaram pelo estudo e pelas indagações sapientes, e os que, longe do bulício, limitam os seus cuidados aos seus interesses privados: todos enfim, aqueles mesmos que se entregaram todos inteiros aos prazeres, declaram que a vida nada é sem a amizade, por pouco que queiram reservar a sua para algum sentimento honorável.

Ela se insinua, com efeito, não sei como, no coração de todos os homens e não se admite que, sem ela, possa passar nenhuma condição da vida. Bem mais, se é um homem de natureza selvagem, muito feroz para odiar seus semelhantes e fugir do seu contacto, como fazia, diz-se, não sei mais que Timon de Atenas. É preciso ainda que este homem procure um confidente no seio do qual possa verter o seu veneno e o seu ódio. A necessidade da amizade será ainda mais evidente, se ele pudesse admitir que um Deus nos tirasse do seio da sociedade para nos colocar numa solidão profunda, onde, fornecendo-nos em abundância tudo o que a natureza nos pode propinar, nos subtraísse ao mesmo passo a esperança e os meios de ver jamais qualquer face humana.

Qual é a alma de ferro que suportaria uma tal existência e a quem a solidão não tornaria insípidos todos os gozos? Assim tenho por verdadeiras as palavras de Arquitas de Taranto, que entendi recordar a velhos que as ouviram eles próprios de seus pais: «se alguem subir ao céu, e de lá contemplar a beleza do universo e dos astros, todas essas maravilhas deixá-lo-ão indiferente, enquanto que o embasbacarão de surpresa se tiver de contá-las a alguém». Assim, a natureza do homem se recusa à solidão, e parece sempre procurar um apoio: e não o há mais doce que o coração de um terno amigo.

Marcus Cícero, in 'Diálogo sobre a Amizade'

Thursday, April 21, 2011

O Amor é um Prémio sem Mérito


O amor é, por definição, um prémio sem mérito. Se uma mulher me diz: eu amo-te porque tu és inteligente, porque és uma pessoa decente, porque me dás presentes, porque não andas atrás de outras mulheres, porque sabes cozinhar, então eu fico desapontado. É muito mehor ouvir: eu sou louca por ti embora nem sejas inteligente nem uma pessoa decente, embora sejas um mentiroso, um egoísta e um canalha.

Milan Kundera, in "A Lentidão"

Thursday, April 14, 2011

Pode a mente medíocre “realizar” Deus?


Pode a mente medíocre “realizar” Deus? Não é isso, Senhor? Podeis usar as palavras “realizar o seu preenchimento” — o que quer que elas signifiquem. Pode a mente ser libertada, pode a mente achar a Verdade, Deus? Senhor, tende a bondade de escutar. Pode a mente medíocre, pequena, perturbada, a mente mesquinha, dividida, vulgar, achar a Realidade? A Realidade é coisa totalmente desconhecida. É uma coisa que só pode existir momento por momento, e não uma coisa fixa num ponto, onde eu possa ir apanhá-la. Se ela está fixa num ponto para eu alcançá-la, ela é uma invenção da mente. Criamos Deus à nossa imagem, não é verdade? Todos os livros, todos os templos estão cheios dos produtos da nossa mão — a palavra, a imagem ou o símbolo, que a mente considera muito importante, porque tem medo de descobrir por si mesma Pode uma tal mentalidade descobrir a Verdade ou “realizar o seu preenchimento” o que quer que signifique “seu preenchimento”? Pode a mente pequenina, que só pensa em termos de “adquirir mais”, em termos de tempo — fazer algo amanhã, alcançar alguma coisa na próxima vida pode uma tal mente compreender o que é atemporal, aquilo que está além das exigências psicológicas temporais, oriundas do desejo? Não pode, evidentemente. Senhores, Deus não é uma coisa que se pode adquirir como se adquire um terno de roupa ou uma virtude. É algo incomparável, atemporal, inimaginável, inefável: não podeis ir a Ele. Ele deve vir a vós, e tão-somente quando o vosso espírito não mais está buscando. Porque estais buscando, agora, com o fito de adquirir, de ter conforto, com o fito de vos tornardes algo; porque só pensais em termos de tempo, de desenvolvimento, obtenção de resultados — não podeis nunca saber o que é a Realidade. Mente assim, é mente medíocre. Ela é capaz de inventar frases, de falar a respeito de Deus, a respeito da Verdade. Essa mente, porém, não pode ter a experiência da Realidade. Quando a mente já não compara, não adquire — só a essa mente que está tranqüila, pode a Realidade manifestar-se; e essa Realidade não é contínua, ela existe de momento a momento. O que foi, não é, e o que é não será. Senhores, isto não são meras palavras. Quando examinardes realmente o problema relativo a tudo o que acabo de dizer, descobrireis por vós mesmos o que é ser criador. Tereis, vós mesmos, a mente que já não compara, já não adquire, a mente que ingressou num “estado de ser” — e nesse ser a Realidade penetra. A Realidade não é sempre a mesma. Por conseguinte, a mente não pode escrever ou falar sobre a Realidade, descrever a Realidade. A Realidade não tem nenhuma atração. Não posso dizer que ela me atrai. Por conseguinte, é fútil e tolo falar a esse respeito. Só quando a mente já não está buscando, já não está exigindo, procurando, desejando tornar-se alguma coisa só então a mente está tranqüila; e esta tranqüilidade não é consciente; esta tranqüilidade varia de momento a momento. A mente que só conhece a continuidade não é tranqüila. Tudo isso exige muita paciência, percebimento e autoconhecimento Esse autoconhecimento não é o conhecimento de um certo “ego”, de que ouvistes falar nos livros e dentro do qual fostes condicionado e educado; mas do vosso “ego” de todos os dias, o “ego” que procura, busca, deseja, adquire, que está descontente, que corrompe, que é ávido em vão, e inventa a hierarquia com o um de firmar cada vez mais o seu poderio. Tal é a mente, que cumpre ser compreendida. E ela só pode ser compreendida momento por momento, quando andais, quando falais. Vereis, se observardes a linguagem com que falais ao vosso criado, quanto está condicionada a vossa mente, inutilizada pela tradição; esta mente nunca há de achar a Realidade. É necessária uma revolução total do nosso pensar, para que o atemporal possa acontecer

Monday, April 11, 2011

Conformismo e Liberdade

Viver sozinho requer grande inteligência; viver sozinho e ainda assim ser dócil é algo árduo. Viver sozinho, sem os muros das gratificações em que nos enclausuramos requer que sejamos extremamente alertas; pois uma vida solitária estimula a preguiça, hábitos que são confortadores e difíceis de romper. Uma vida a sós encoraja o isolamento, e apenas os sábios podem viver a sós sem causar mal a eles próprios ou aos outros. A sabedoria é solitária, mas um caminho solitário não leva necessariamente à sabedoria. O isolamento é morte, e a sabedoria não se atinge pelo fato de você se retirar. Não existe caminho para a sabedoria pois todos os caminhos são separadores, exclusivos. Pela sua própria natureza, os caminhos podem apenas conduzir ao isolamento, embora esses isolamentos sejam chamados de unidade, de totalidade, de uno, e assim por diante. Um caminho é um processo exclusivo; os meios são exclusivos e os fins são como os meios. Os meios não são separados do objetivo, daquilo “que deveria ser”. A sabedoria chega com a compreensão do relacionamento com o campo, com o passante, com o pensamento fugaz. Retirar-se, isolar-se de modo a poder descobrir, significa pôr um fim a descoberta. O relacionamento leva a uma solidão que não é de isolamento. É preciso que haja solidão, não da mente que se fecha em si mesma, mas da liberdade. O completo é o sozinho, e a incompletude busca o caminho do isolamento.